quinta-feira, 6 de agosto de 2009

LENDA DO SECULO XIII

SALUQUIA
Ha uma curiosa lenda mui popular, que corre como tradição, sobre a conquista do castello de Moura, entre os povos que banha o caudaloso Guadiana, terra adentro de Portugal, e que velhos pastores e antigas caseiras referem ainda, nas largas noites de inverno, ao calor irradiante das chammas que devoram os troncos seccos de asinho, sob as grandes chaminés arabes das casas rusticas.
Ao sucesso dá-se por data o anno de 1226, e como acontecido no castello de moura, situado trés milhas a E. do rio Guadiana, por cima de Serpa e entre Beja e Ficalho.
Ouvimol-a contar em o Natal de 1867, a uns pastores que tinham a sua malhada nas margens do rio Ardila, que desemboca no Guadiana antes de chegar a Moura.
O ancião que nos referiu esta lenda era da villa de Monsaraz e ouviu-a varias vezes a um tio seu, prior de Mertola, e irmão de sua mãe, como uma das tradições populares do paiz, ás quais foi mui dado o bom parocho que, como constante caçador, passava as noites nas choças e nas granjas, referindo aos seus companheiros de caça e aos camponezes que queriam ouvil-o, as suas historias portuguezas.
Eis aqui, pois, tão curiosa lenda, algo ornamentada por nós com alguns apontamentos historicos que a tornam mais interessante.

II

Na queda da monarchia das Aftasidas, que reinaram em Badajoz até aos fins do seculo XI e cujo ultimo rei, Omar-Almotawaquil, morreu alanceado nas margens do rio Bekayah (Caya), a uma legua de Badajoz, pelos sanguinarios almoravides, e depois os Almohades, que não foram mais humanos, uma oligarchia pertubadora imperou largos annos em toda a parte occidental da Peninsula, denominada pelos arabes o Al-Gharbyya; e desde Al-Karsr-ibn-Abu-Danés, nome que davam os almohades ás provincias extremenhas de hoje, até aos confins do Guadiana e Douro, isto é, desde Andalusun (Andaluzia), até Chalikia (Galiza), cada comarca foi regida ou governada com melhor ou peor sorte, pelo mais forte, que, nomeado Arráez (Caudilho) de outro Emir mais poderoso, a quem pagava tributos, fazia de senhor feudal entre os seus governados.
A comarca de Serpa, que comprehendia Moura, Mertola, Cacella, Tavira, Moreanes, Ficalho e 32 povos mais em de redor, estava submettida ao mouro Buaçon, poderoso senhor, immensamente rico, que havia pelejado na sua mocidade e agora decançava governando o seu pequeno Estado. Do antigo castello romano, denominado Aroche, em ruinas desde o seculo IX, fez elle uma linda fortificação, dando logar junto a seus muros a uma villa, que denominou Moura, pelos que a povoaram, em consequencia do sucesso que anima esta lenda.
Tinha Buaçon uma filha, chamada Saluquia, qur por sua formusura era o encanto de todos os jovens da comarca, e para ella designou, como patrimonio em seu casamento, a villa e castello de Arche, que já começara a governar, como Alcaideça ou Caid do mesmo, desde 1224, segundo uns, ou desde 1219 segundo outros.
Enamorou-se de Saluquia um jovem mouro chamado Al-Brafama, senhor do castelo de Yelmeña, (a que hoje chamam Jerumenha), o qual moço, tido por mui valente, era respeitado por todos os mouros e não menos temido pelos christãos. O velho Buaçon, pae da formosa Saluquia, associara-se varias vezes, em emprezas bellicosas contra christãos, ao Caid de Yelmeña, e com sorte prospera umas vezes e outras adversa, compartilhou com elle as contigencias da guerra.
A principio não levou a bem estes amores o velho Buaçon, que sem duvida sonhava para Saluquia algum principe de stirpe real; mas a Alcaideça de Aroche não era do mesmo perecer e offereceu a sua mão ao jovem Al-Brafama, a quem desde muito queria para marido. Vencida, pois, a vontade do velho Buaçon, concertaram os dois jovens as suas bodas para 29 de junho de 1226 (623 Hegira), dia do Apostolo S. Pedro, muito celebrado pelos christãos com festas, nas quaes por egual tomavam parte os mouros.
Haviam começado antecipadamente para os fellah, ou aldeãos lavradores de Aroche, estas festas, com motivo das que dedicavam a S. João Baptista em 24 de Junho; pis como é sabido, mouros e christãos commemoravam juntos, em Hespanha e Portugal, as festas do fogo, chamados pelo povo as Fogueiras de S. João, verdadeiras recordações do solstício estivo dos tempos pagãos da antiga Roma.
Tudo era allegria, naquelle anno entreos rumies (christãos) e a gente do islam (mahometanos). Desde a vespera do Baptista, as fogueiras illuminavam os campos de Aroche, e ao resplendor das candeias que rodeavam os velhos muros do castello governado pela formosa Saluquia, bailavam as harasas (raparigas) e belledies (camponezes) ao som de alegres canções, em que o kilaból agami (trovador) se fazia acompanhar das guiatras (guitarras), guenberi (bandurras) e tars (pandeiros).
No dia 28, preparava-se a Alcaideça de Aroche para receber na manhã seguinte, dia de S. Pedro, o seu promettido, que viria cavalgando pelo largo albalate (caminho) da pinturesca Jelmanyah, acompanhado de um bom numero de cavalleiros e peões, quando uma noticia que lhe deram os beledies de Aroche a encheu de negros presagios. Segundo estes camponezes, que regressavam de Sheberina (Serpa), tinham visto cruzar o caminho a um numeroso tropel de cavalleiros christãos, armados e em som de guerra, que vinham como do castello de Paymogo, comandados por D. Alvaro Rodrigues e seu irmão D. Pedro, inimigos de Brafama. E não foram infundados os temores de Saluquia, pois no dia seguinte amanheceu, o castello de Aroche, cercado por 2000 cavalleiros christãos. Saluquia subiu ao alto do Almocabar para dalli dominar malhor os arredores do castello, observando com grande pena que as hostes christãs começavam rijamente o ataque. Poz em movimento toda a povoação; fez soar o atambar e o derburya d'um a outro extremo do castello. De prompto se puzeram na defensiva os seus governados; mas o inimigo era numeroso, e á primeira investida apoderou-se do povoado que rodeava a fortalez. Saluquia, louca de terror, refugiou-se na Borch-Calat (torre de menagem), para arengar aos que valentemente luctavam nos ameiados muros. O seu esforço era inutil. Os crhistãos conseguem penetrar pela Bab-as.sheberine (a porta de Serpa), e em turbulento tropel avançam castello acima, gritando:« Victoria, victoria !» Os seus desejos eram fazer captiva a alcaideça, a formosa Saluquia; mas esta comprehendendo-o assim, arremessou-se por um ajimez da torre de menagem, ficando morta nos pedregaes do fosso. Os crhistãos recolheram o corpo ensanguentado, que conduziram para o castello, e prepararam-se para resistir ás hostes que acompanhassem o Caid de Yelmeña, que não se fez esperar muito, pois ás trés horas da tarde deu vista ao castello em companhia do ancião, pae de Saluquia, ambos seguidos d'uns 25 cavalleiros; e apenas informados do triste sucesso acontecido poucas horas antes, cheios de pena, ardendo em ira e com as lagrimas nos olhos, retiraram-se para Sheberina a deliberar entre si o que poderiam fazer para reconquistar Aroche e vingar juntamente a morte da sua Alcaideça. E segundo as chronicas lusitanas, é fama que esta villa ficou desde então sob o domínio dos christãos, que, ao repovoarem-n'a, a denominaram Villa Nova de Moura, em memoria, sem duvida, da celebre Alcaideça da villa, a formosa Saluquia.
(in TRADIÇÃO DE SERPA - 1902)


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“Eu não sou eu nem sou o outro, Sou qualquer coisa de intermédio: Pilar da ponte de tédio Que vai de mim para o Outro.”