domingo, 2 de agosto de 2009

COSTUMES DA MINHA TERRA


    OS DESCANTES
Entre os diversos costumes, tão originaes e pittorescos, que exornam* brilhantemente a minha terra, - terra fertil e opulenta de tradições populares - um existe, que para mim, é duplamente agradavel e sympatico, já pelo dulcido aroma da poesia simples, ingenua e primitiva que delle se evola, já pela sua antiguidade muitas vezes secular.
Quero referir-me aos descantes na via publica.
Quem nunca tiver passado á margem esquerda do Guadiana, e não tiver permanecido durante alguns dias n'este saudavel e uberrimo torrão do Alemtejo, chamado Serpa, - berço nobilissimo, que foi,, de José Corrêa da Serra - é natural que desconheça o velho costume, genuinamente popular e accentuadamente transtagano, que esta villa mantem em todo o esplendor.
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São os descantes, por assim dizer, quasi exclusivos dos trabalhadores ruraes.
Essa pobre e soffredora gente, que leva a vida inteira a moirejar, disseminada por montes e valles, á chuva, ao sol. ao frio, encontra no canto coral como que um doce lenitivo á rudeza do labor que a subjuga desde o berço até á sepultura. E assim, quando os seus ocios lh'o permitem, eil-os agrupados, os rijos operarios do campo, e a percorrerem mansamente as ruas da povoação em estridulo cantar.
Ao som da classica viola ou do harmonium - instrumentos, que o camponez mais experto e ladino apprende a tanger logo em creança, ainda quando «moço do monte» ou azagal - e n'um rythmo ora arrastado ora rapido, mas em regra saudoso e dolente, elles entoam canções da sua e da minha terra -as mais bellas, as mais formosas, as mais inspiradas e ardentes: as mais amorosamente expressivas e expressivamente arrebatadoras que ainda me foi dado ouvir em terras de Portugal !
Releve-me o leitor benevolo, a patriotica ousadia de inserir aqui meia duzia de estancias, separadas ao acaso, d'esse extraordinario poema infindavel, encantador de simplicidade, radioso e suggestivo, nascido espontaneamente da alma popular.
O amor nasce dos olhos
Mais da mão quando se aperta;
Em chegando ao coração...
Não digo mais, et cetra!
Coração que adora a dois,
Algum ha-de amar em falso...
Ha-de ter muito que ver
Duas pombinhas n'um laço!
Ha muito tempo que eu ando,
Lindo amor! p'ra te fallar;
A vergonha me desvia,
O amor me faz chegar.
Os teus olhos de pau preto,
Riscadinhos a compasso,
São o s'pelho em que me vejo
Quando á tua rua passo.
Com pena peguei na penna,
Com pena puz-me a escrever,
Caiu-me a penna da mão,
Com pena de te não ver.
Chorar, sentir, padecer,
São effeitos de quem ama;
Quem se obriga a bem querer,
Tristes lagrimas derrama !
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M.Dias Nunes
in TRADIÇÃO DE SERPA 1902
                                    
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“Eu não sou eu nem sou o outro, Sou qualquer coisa de intermédio: Pilar da ponte de tédio Que vai de mim para o Outro.”