
O PADRE RIDICULO
(RECOLHIDO DA TRADIÇÃO ORAL)
Era uma vez um padre muito ridiculo, e por isso em chegando proximo os fins dos mezes, arranjava sempre uma questão com os criados rapazolas que o serviam e despedia-os sem lhes pagar; assim ia sendo servido de graça.
Um dia um estudante fez uma aposta com os companheiros de que era capaz de roubar o padre. Os outros apostaram que não; e elle para ganhar a aposta vestiu-se com um fato muito velho, e á noite foi a casa do padre saber se queria um criado, accomodando-se com todas as condições que elle lhe impôz.
O padre estava assentado e mais a sua ama, a um bello lume de lenha, e disse ao rapaz que fosse tambem para ali.
O rapaz foi, e passado pouco tempo, diz-lhe o padre:
- «Então como me chamam por ahi a mim?»
- «Chamam-lhe o sr. padre prior.»
- Fortes parvos ! Eu chamo-me papa-deuses.»
O rapaz fez.se muito admirado.
- «E então a esta senhora ?»
- «Ama do sr. prior.»
- « Sucia de bestas ! Esta é a Fugritatis.»
Nova admiração do rapaz.
- «E isto?» - Dizia elle indigitando o gato.
- «É um gato.»
- «Não; é o papa-ratos.»
- «E isto ?»
- «É o lume.»
- «Não. São alumiantes.»
- «E aquillo?»
- «São umas escadas.»
- «Qual historia; são escrimonias.»
- «E o que está nos paus da chaminé ?»
- «São chouriços e paios.»
- «Não digas tolices. São papas e cardeaes.»
- «E isto ?»
- «É agua.»
- «Não; isto chama-se abundantes.»
O rapaz tomou muito sentido em todos os nomes, e d'ali a pedaço diz:
- «Ora eu queria pedir um favor a V.Sª.»
- «Então o que é ?»
- «É que eu tenho sezões, e já estou com frio (e n'isto batia com os dentes uns nos outros) e então se me deixasse dormir aqui, eu mesmo na lareira me deito.
O padre teve dó e deu a licença pedida.
D'ali a pouco a ama, que já tinha acabado de passar as contas, e dormindo no entrevalo dos padre-nossos e das ave-marias, lembrou ao padre que eram horas de se deitarem.
O padre que tambem já tinha completado a sua conta, despejando a longos tragos a borracha de vinho e comido o ultimo bocadinho de lombo assado no espêto ao bello lume, e encontrando-se tão quente por fora como por dentro, resolveu ir deitar-se, deixando o rapaz ao lume a curtir a sezão e lembrando-lhe que pela manhã tinha de ir ajudar-lhe à missa.
- «Vá vossa mercê descançado, que a essa hora já me tem passado a trabuzana, e estou leve como um coelho.»
Tanto que o rapaz ouviu ressonar o padre e a ama, tirou a carne toda que estava na chaminé para um saco que achou e pôz diante da porta do quarto quantas cadeiras e mezas achou; atou uma porção de estôpa ao rabo do gato, que começou a dar berros quando elle com um tição de lume lhe deitou fogo; e pondo o sacco da carne ás costas, foi bater á porta do quarto dizendo:
- «'O pápa-deuses ! tira-te dos braços da Frugritatis, vae acudir ao papa-ratos que vae pelas escrimoneas acima, cheio de alumiantes; acode-lhe com abundantes, que eu cá vou carregado de pápas e cardeaes.»
Quando o padre depois de ter partido o nariz nas cadeiras que estavam á porta, poude entrar na cosinha, ficou desesperado por aquelle marôto lhe ter roubado os seus bellos paios e chouriços. Mas por mais que procurou nunca soube quem tinha sido o espertalhão que o enganou, ganhando assim, o estudante a aposta que tinha feito.
Seja Deus louvado
E o meu conto acabado,
Que não é bonito,
Mas é bem contado.
(TRADIÇÃO DE SERPA publicada em 1902) - Ortografia conforme o original.