
I
SOBRE A AMASSADURA
Toda a mulher alemtejana, desde a mais pobre e humilde até á mais rica e opulenta, sabe amassar e tender. É um dos serviços domesticos, que entra indispensavelmente na educação feminina, em obediencia á força dominadora de salutares habitos tradicionaes que - Deus louvado ! - ainda vigoram n'esta abençoada provincia transtagana.
Conheço, sobre a amassadura, alguns preceitos devéras interessantes, que passo a referir.
Depois de peneirada a farinha e feita a "presa" (represa) no classico alguidar de barro vidrado, a amassadeira benze devotamente o contheudo da vasilha, proferindo as palavras sacramentaes: «Padre, Filho, Espirito Santo».
E em seguida principia o fabrico da massa.
Ao lançar no alguidar a ultima porção d'agua, a amassadeira diz assim:
«Lá vae
Em louvor de Santo Antão,
P'ra que cresça mais um pão.»
ou:
«Lá vae
Em louvor de Santo Antão,
P'ra que cresça agora em massa
Conforme cresceu em grão.»
Terminado o fabrico, a amassadeira cobre o pão d'uma camada espessa de farinha e finca-lhe depois, com a mão em cutelo, uma cruz algo profunda, rezando ao mesmo tempo:
«Deus te accrescente,
E as almas do ceo, p'ra sempre.
E assim como a Virgem é pura,
Assim Deus me accrescente
A minha amassadura.»
Faz-se mister muito cuidado na abertura da referida cruz, que deve ser pequena, pois - segundo affirma o provérbio - «quem grande cruz faz na massa, grande cruz passa.»
O fermento tambem leva uma cruz, que muito convem polvilhar de sal, para evitar os malefícios das bruxas.
O dicto popular:
- «Aonde irá a bruxa cear ?
- «Onde houver fermento sem sal »,
bem que põe de sobreaviso as mulheres que amassam.
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II
AS PEDRAS DE RAIO
Já não faz mister outra campanha, como a que sustentou no começo do seculo passado o insigne naturalista francez, Boucher de Perthes, a fim de convencer os espiritos cultos d'aquelle tempo - de que as pedras vulgarmente chamadas de raio representavam apenas os primeiros instrumentos de trabalho fabricados pelo homem.* Para quem for, ao menos, medianamente instruido, o facto não offerece hoje a mais ligeira dúvida.
Mas se isto é assim tratando-se de pessoas ilustradas, já não se dá o mesmo com gente inculta, a qual ainda vê nas machadinhas prehistoricas, as pedras de lume terrorisantes com que Deus castiga e pune os humanos peccadores.
D'esta crença supersticiosa driva o grande apreço em que o povo tem as referidas pedras, as quaes adora e guarda como se foram reliquias sagradas, attribuindo-lhes varios poderes e virtudes miraculosas.
Segundo a lenda espalhada n'esta região, as machadinhas** - chamadas pedras de raio ou pedras de corisco, conforme são maiores ou menores, - penetram no sólo até á profundidade de sete varas; depois vêm subindo, subindo, uma vara em cada anno, até chegarem á flor da terra. A principal efficacia milagrosa que por aqui se lhes liga, é á de preservarem de perigos.** * «Onde um não cae outro» - é a própria expressão e a convicção popular.
Em consequencia de tão precioso attributo, as macchadinhas difficilmente se obteem, apesar da sua abundancia n'esta região.
A gente do povo costuma fechal-as a sete chaves dentro da arca de pinho ou do bahú; e a burguezia illetrada, essa guarda-as, talvez, no ámago dos oratórios, ao lado dos santos e santas de maior devoção.
* Antes de Boucher de Perthes affirmára Buffon - affrontando as iras da reacção - que as machadinhas eram nem mais nem menos do que os primeiros monumentos da arte humana.
- Coincidencia notável: Buffon falleceu, precisamente, no anno em que Boucher de Perthes viu a luz do dia (1788).
PARA MIM - LLOBO - SE ME É PERMITIDO, AS MACHADINHAS ERAM «COUP DE POING» SERÁ ?
** AH! AH! MINHA MACHADINHA QUEM TE PÔS A MÃO SABENDO QUE ÉS MINHA ?... (LLOBO)
*** Perigo = ráio ou corisco.
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III
A OITAVA DO GORRO
Parece que, n'outras eras, ha um século talvez, as raparigas do campo, aqui por estas redondezas, costumavam brindar os respectivos derriços com um gôrro ou barrete de linha azul, pacientemente feito á agulha nos largos serões de inverno.
Á curiosissima praxe, outr'ora observada entre namorados, allude a tradicional oitava, em que um amante nada gentil ousa detrahir (depreciar) o acabamento da prenda recebida:
Tenho vergonha de pôr
Esta obra na cabeça !
Oh ! vê lá, não te aconteça
Eu perder-te o amor...!
Busca outro superior,
Outro que tenha mais geito,
Que eu sempre te quer'dizer
-Que o gorro não está bem feito !
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IV
NA DEFUNÇÃO* DAS CREANÇAS
*Defunção- Falecimento.
Não ha muitos annos, ainda felicitavam-se os paes pela extinção dos filhos que a morte arrebatava em tenra edade - os filhos, «innocentes anginhos, que Deus chamava á sua divina gloria.»
Na gente do campo, em Serpa, eram assim os cumprimentos do estylo, trocados entre o felicitador e a mãe da creança morta:
- «Seja muito parabem de dar um menino ao Céo.»
- «Ditosa da mãe que é ama de Deus Nosso Senhor.»
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V
OS MANDAMENTOS DO CLERIGO
Primeiro - Servir a Deus por dinheiro.
Segundo - Enganar a Deus e a todo o mundo.
Terceiro - Bôa cama, melhor travesseiro.
Quarto - Jejuar de pois de farto.
Quinto - Differençar o branco do tinto.
(Da tradição oral de Serpa - recolhido por Leopoldo Parreira)