
D. SEBASTIÃO EM SERPA
Escreveu um certo João Cascão uma narrativa deveras interessante da viagem que o malogrado rei D. Sebastião fez pelo Alemtejo e Algarve em 1573.
O acolhimento que lhe faziam e á sua comitiva era quasi igual em todas as povoações. As ordenanças com as suas bandeiras receberam o monarcha com salvas e as municipalidades acompanhavam-no procissionalmente conduzindo-o debaixo do pálio, que em mais uma povoação servira ao imperador do Espírito-Santo, emquanto os foguetes e os artificios de fogo estalavam nos ares.
Mascaradas, folias pelas (danças) danças de «ciganas», de «almozonas» e de mulatas, homens formados em soisses, (donde fizemos súcias), mouriscas, arremedos á judenga, representações de autos de sempenhados por castelhanos (em Odemira), constituiam os principaes divertimentos, nos quaes o próprio rei não desdenhava de tomar parte quando se tratava de touradas e caçadas. Pode fazer-se ideia do que seriam aquellas festas comparando-as com os actuaes entrudos. Durante a noite as luminarias nas janellas e as abrricas de alcatrão nas muralhas das villas tentavam rasgar o negrume.
Não escapava o rei de receber á entradada das povoações os salamaleques de qualquer magistrado de eloquencia mais ou menos empolada, o qual todavia não tinha a dita de ver a sua producção nas columnas de nenhum Diario do Governo. Em Moura, onde o rei foi recebido por onze bandeiras de ordenança e duas danças, pronunciou o prior de S. João um discurso em que se dizio o seguinte:
«Os antigos egypcios que em lugar de letras usavão de figuras, quando queriam significar a Deus pintavam um sceptro direito e levantado com um olho em cima dando a entender por esta figura ser Deus justo e ver tudo. Na sagrada Escritura os Reis se chamão Deuses não por natureza mas por imitação.»
Estas e semalhantes omenagens feitas a rapaz mal educado em todos os ramos que não fossem os sport e religiosos (educação jesuitica), cercado de uma côrte de esfaimados dependentes, não faziam mais do que preparar a crise por que passou Portugal em 158o.
A grossaria do monarcha póde avaliar-se pelas palavras que pronunciou depois de ver as môças da Duquesa de Bragança, que estavam reunidas no guarda-roupa, sala por onde necessariamente o rei havia de passar:
«que bem se poderia ali fazer outra ezefema.» Donde colligiu o chronista que ellas lhe deveriam ter parecido bem.
O enthusiasmo com foi acolhido o monarcha já tinha cessado, quando foi preciso reunir contingentes militares que o haviam de acompanhar na infeliz campanha de África, e tambem quando a inde pendencia da patria exigia mais do que cumprimentos e homenagens artificiaes e interesseiras.. Então como hoje bem pode classificar-se o patriotismo portuguez como «der laermende gedanklosen Patriotismus der Portugisen*», sob o ruido do qual politicos e familias internacionaes retalham ou hypothecam o patrimonio comum.
Da narrativa de Cascão apresento aos leitores da benemerita revista a parte que se refere á permanencia do rei D. Sebastião em Serpa.
«6ª feira 6 de fevereiro ouvio el Rey missa em Mertola ás 6 horas o senhor D. Duarte a ouvio com elle. Soube vindo da Igreja que avia na villa touros e mandou que os tivessem prestes, os quais estavão da bande de allem do rio. Passou el Rey em um bergantim indo ia de caminho para Serpa. Vio os touros em hum serrado que ali avia, mandou sair a elles seu moço de Camara, e lhe fez alguãs sortes, e depois entrou elle e o senhor D. Duarte e o Duque de Aveiro e alguns fidalgos até se vir corromper a festa, e entrar tambem Lopo Roiz, ainda que os touros não tinhão os cornos cerrados. Deixou el Rey esta festa e partio para Serpa que são sete legoas grandes e de roins caminhos, duas legoas antes de chegar a Serpa se desceo el Rey em hum vale, e esteve um pedaço grande descançando. O Duque d'Aveiro estando no caminho a cavalo consoando com alguns fidalgos que comem a sua meza lhe cahio o chapeu no chão, e D. Francisco de Portugal mandou seu filho D. João que tras a mala del Rey qee se descesse e tomasse o chapeu e o beijasse e o desse ao Duque de Aveiro o que elle fez, e o Duque de Aveiro o recebeo com as suas cortezias costumadas. El Rey se pos a cavalo e antes de chegar a Serpa mea legoa o receberão 92 homens de cavalo de capas e espadas e a ordenança de sete bandeiras e á porta da villa estava hum arco de madeira por onde havia de entrar bem concertado com hum vulto de S. Sebastião em cima, e no arco huns versos em latim que adiante se escreverão. A porta estava armada de tapeçaria, e nella feito hum pulpito de madeira em que se lhe houvera de fazer a falla que não houve effeito pello que direy e ira fora da história escrita.
Nesta porta o receberão os vreadores em hum palio de damasco branco el-Rey se deteve parecendolhe pelas insignias que avia falla e o seu porteiro mor e alcaide mor se chegou a elle lhe disse que não avia falla porque o homem que estava para a fazer esmorecera não se atrevendo a fazella. O alcaide mor lhe entregou as chaves da villa e o acompanhou a pé na forma costumada.
Receberam a el Rey com palio em Serpa sendo villa e não notavel** foi mercê particular que el Rey quiz fazer a João de Mello e a D. Martinho Pereira e Manuel Quaresma que são naturais d'esta villa. Isto dizião os praguentos e tambem dizião que soltarão alguns prezos que tinham parte.
El Rey foi levado por huma rua muy comprida e toda armada e com algumas moças bem parecidas até o castello onde estava aposentado, acompanhado de tudo acima dito e com mais cinco danças tres de molheres moças e muito feas e duas de homens, e duas pellas: aqui achou o el Rey recado Rainha.
Serpa he de 1:300 vizinhos, á noite no castello desta villa muitas luminarias. O palio deu-o o estribeiro mór para o Sanctíssimo Sacranento.
Sabado 7 de Fevereiro ouvio el Rey missa em Serpa, o senhor D. Duarte a ouvio com elle, depoide jantar lhe correram touros, andou a elles eo senhor Dom Duarte, e o Conde de Vimioso, e Christovão de Tavora, e o Alferes mór, e Dom Pedro de Menezes, houve dous touros muito arresoados a que todos fizerão sortes, e a que de mais gosto houve assi em el Rey, como em todos, foi huma que fez hum moço de estribeira do senhor Dom Duarte que tomando-o o touro lhe rompeo com hum corno huma aljubebeira que trazia bem provida de cartas de jugar e de tentos e algum dinheiro, e lhe espalhou todo pelo corro. Fica a historia sendo mais fermosa, a quem souber a inclinação que este homem tem a este exercicio de cartas, e bem se enxergou nelle ser-lhe affeiçoado, porque muito devagar as tornou a apanhar todas.
Hum homem velho por festejar a el Rey fez algumas sortes ao touro pezadamente como velho, e el Rey por sua idade não ser para andar no corro houve que estava bebado, e depois que soube que era querer lhe fazer festa, fez-lhe mercê de huns officios que tinha para um filho seu. Os touros acabados partio entre as duas e as tres para Moura pella posta com o senhor Dom Duarte, e o Duque de Aveiro, e todos os fidalgos que quizerão correr que são quatro legoas de jornada. Chegou el Rey a uma fonte e esteve bebendo por hum capeo de tafetá do filho do Conde de Vimioso, e matarão huma adem em alagoa as Coladas, a qual com medo do falcão que lhe tinha dado huma pancada se veyo ali meter. No caminho correndo a posta cahio o cavalo com Dom Rodrigo Lobo, e o tratou muito mal, e de Moura mandou el Rey que se fosse para Evora. Dom Alvaro filho do Conde do Vimioso deu outra queda, mas não fez nada»
*(Das Echo XXI (1902) 2968
** Mais tarde recebeu o titulo de Notável Vila
in TRADIÇÃO