
MONTE DA RETORTA
CONTOS DE MALTEZ *
«Missa como as mais»
Mestre Manel Cachucho, bom alfaiate e melhor bebedor, juntou-se no ádro de S. Thiago, com o seu inseparável companheiro, Chico Tombinhas, que a deitar seu apelido, era dos primeiros.
Depois da festa na Igreja, resolveram como era seu costume, ir beber a sua canada e, se tempo e dinheiro houvesse, esturrar o seu meio almude. Não era de mais para os dois que sempre estavam preparados com o seu bocado de bacalhau cru, servindo de isco e para puxar a bebida. Entraram nas vendas que encontraram e depois de dar fim à féria da semana, poisaram na praça, sentados num dos bancos os proventos e habilidades dos seus ofícios.
Durou a cavaqueira até que ambos, em profundo sôno, se esqueceram das canseiras desta vida, para verem belezas através de sonhos.
Alta madrugada, acordou mestre Cachucho, e, que háde ver? O Tombinhas estirado no chão a roncar como um varrasco. Espera que eu te arranjo!... Sáca da tezoura do ofício e ao pobre do bate-sola, córta o bigode e no alto do toutiço faz-lhe uma corôa. Muito devagarinho se rapou e foi tratar da sua vida.
O Tombinhas acordou já com o sol por essas alturas e estranhou o beiço superior, passou-lhe a mão e ficou atrapalhado ao ver que não tinha bigode; ao pôr o chapéu sentio frio na cabêça e verificou se aquela estava molhada. Não estava, levou a mão à cabeça percebendo que tinha uma corôa digna de um cónego. Não se ralou, bebeu 10 reis de água-ardente -fiados- na primeira venda que encontrou e marchou para a loja muito satisfeito com o belo dia que tinha passado, não se lembrando da noite.
Entrou em casa cantando "Manelzinho você chóra" e, depois de ter falado à companheira e aos môços, foi para a loja tratar de deitar meias solas nuns butes d'um freguez da Salvada.
Ali pelo meio dia chegou o freguez que ao ver o Tombinhas sem bigóde e com uma corôa muito se riu, perguntando-lhe se ele agora ia ser padre. O Tombimhas não se alterou e disse-lhe: «Ólhe, tmára eu que faltasse algum prior n'alguma freguesia, logo eu lá estava. O latim custa menos que deitar tombas e senão vêja lá o mestre Zé Santinho, ganha mais depois que é sacristão do que quando era oficial da gente fina cá de Beja.».
«Pois olhe mestre» - diz-lhe o freguez - «na Albernôa teem falta de um padre e não há meio de arranjarem.».
«Verêmos isso» diz o Tombinhas, entregando os butes amanhádos ao freguez. Pagou este um quartinho de amanho e despediu-se.
Mal este sahia, Tombinhas fecha a loja, vae para a mulher e diz-lhe: «Oh Catrina vou ser padre!...»
«Oh homem vae prantar os rôtos nas botas caneleiras do Sr. compadre e deixa-te de paleio».
«Q'al paleio nem q'al raio ! Já te disse, vou ser padre», e dizendo isto, abála pela porta fora sem mais aquelas. Sai da cidade entesta com a estrada que vae dar à freguezia de Albernôa e só pára quando ali chegou, a suar em bica. Logo à chegada encontra um almocreve a quem pergunta onde mora o sacristão ou então o regedor, ouvindo esta resposta: « Olhe ê cá nã sê, nem dou borrunto d'essa gente, pregunte isso ó ti Alminhas talvez lhe dê esses informes».
Marchou em cáta do tio Alminhas que era o encarregado do correio e d'este conseguiu saber onde morava o sacristão e o regedor. Foi a casa do sacristão e depois de lhe meter na cabeça que era padre, levou-o à do regedor com o fim de fazer tocar o sino da egreja e reunir o pôvo.
Junto todo o povo da aldeia, fez-lhe uma fala dizendo que estava pronto a tomar posse da freguezia, se assim o quizessem. Com grande júbilo foi logo aceite o novo prior e resolveram ir no dia seguinte uma comissão a Beja pedir a nomeação ao Sr. Bispo. Assim se fez e foi nomeado o padre Francisco para a Albernôa.
No primeiro domingo que têve de ir dizer missa, às 8.h. da manhã estava a egreja dando um estoiro e muita gente têve de ficar no alpendre do adro. Depois do toque repinicado do sino, sai da sacristia para o altar-mor o novo prior devidamente paramentado, acompanha-o o compádre sacristão que na véspera à noite havia ajustado o seu ganho nas diferentes cerimónias.
Logo que chegou ao altar benzeu-se e agradeceu as ofertas que tinha recebido, a quando da sua nomeação. Não era pouco: 37 borregos, 57 galinhas, 27 queijos, 7 alqueires de azeite, 127 dúzias de ovos e uma dúzia de empadas que o tinham deixado a impar.
Feitos os agradecimentos, fez uma vánia e voltando-se para os devótos diz: «Meus irmãos esta missa é: «Missa como em Beja, missa como em Serpa, missa como em Moura, missa como as mais! Tenho dito». Volta as costas e segue para a sacristia, onde tratou de envergar a batina oferecida pela lavradôra do Monte das Tisnadas e raspa-se caminho de casa, onde a milher já estava como Ama e os oito filhos como afilhados.
Os devotos estavam na egreja julgando que o Sr. prior tinha ido à sacristia por se sentir com qualquer incómodo e continuaram à espera até que passada uma hora o sacristão os veio pôr na rua para fechar a porta. Uma velhinha muito penitente, diz indignada: «mas então a missa?»... Responde o sacristão: «Ora essa, então não ouviu? É porque é surda.». Mais alguns protestaram mas por fim foram sahindo e comentando a seu modo, até um ceareiro da Trindade que se tinha por mais entendido disse: «eu já esperava isto, disseram-me lá no Algarve que os costumes se iam modar e aqui está a prova».
Todos se foram recolhendo às suas casas desejando o próximo domingo para então porem o caso a limpo.
Chegado que foi esse dia foi muito maior o número de fiéis, bastava já de escândalo, como muitos diziam.
Da mesma forma chegado ao altar o padre Francisco diz:: «Meus irmãos, missa como em Mértola, missa como em Brinches, missa como as mais!... Meia volta sacristia, outra meia volta casa....
Os freguezes é que ficaram indignados e resolveram ir queichar-se ao Sr Bispo. Nomeada nova comissão, foi esta a Beja, e, ali se apresentou ao Prelado que a ouviu e por fim resolveu que só um falando de cada vez dissece a forma como o seu prior dizia a missa.
O primeiro a ser ouvido declarou: que o padre Francisco ao chegar ao altar, só dizia: «Missa como em Beja, missa como em Serpa e mais nada. O segundo fez igual declaração, o prior só dizia: «missa como em Moura, missa como em Brinches, missa como as mais. E, assim foram as declarações do resto de toda a comissão que o bom Prelado teve de ouvir.
Terminados os discursos dos reclamantes o Prelado fez-lhes uma grande prelecção, terminando por dizer que estava satisfeitíssimo com o que ouvira, tanto mais que não conhecendo bem o padre Francisco, viu que ele era cumpridor dos seus devêres, visto que na missa era igual aos seus confrades de Beja, de Serpa, de Moura, de Brinches, etc.. Todos da sua diocese e sendo exemplares nos seus deveres. E como ele na missa era igual àqueles outros, seria nomeado cónego na próxima vága que houvesse. Terminou dizendo-lhes que sempre fizessem o que lhes ordenasse o Sr. padre Francisco e que não o tornassema incomodar sem razão.
Foi assim que mestre Tombinhas morreu cónego na Albernôa.
(Contado por Manuel Gomes, no Monte da Retorta em 1926 e, posteriormente, transcrito por LEOPOLDO PARREIRA - meu Avô materno e proprietário da Retorta - )
* Maltez - designação dada a homens que se deslocavam de monte em monte, onde faziam alguns trabalhos, sendo-lhes dada alimentação e alojamento, por curtos espaços de tempo..