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É bem sabido, como da conquista dos árabes e da sua longa permanência na Península, principalmente na parte meridional, ficaram muitos vestígios no aspecto, nos hábitos, nas indústrias locais e na língua do nosso povo. Quanto à língua, porém, aquela influência limitou-se em geral a enriquecer o vocabulário. A gramática ficou latina ou latino-rústica, sem modificação sensível. A índole das duas línguas, aquela de que já usavam os conquistados e a que traziam consigo os conquistadores, era demasiado diversa para que se pudessem penetrar profundamente.
A linguagem dos povos da Península ficou, pois, intacta ou quase intacta na sua estrutura íntima, e apenas superficialmente enriqueceu de novas palavras. E mesmo na adopção destas novas palavras deu-se uma circunstância notável. São raras, como já indicaram Engelmann e Diez, as palavras abstractas, espanholas ou portuguesas, de origem árabe. Os termos que designam paixões, sentimentos, modos de ser internos do espírito ou da alma, são, com raríssimas excepções, de origem latina, quer dizer, que já se usavam antes da conquista. Parece que dominados e dominadores ficaram durante séculos moralmente separados e afastados. Conservando uma religião distinta, afeições e aspirações diversas, os povos dominados pensavam no seu velho e rude idioma, e apenas aprenderam as palavras necessárias para se entenderem com os seus novos senhores e amos.
Pelo contrário, são frequentes as palavras concretas de origem árabe. Nomes de impostos, de cargos civis e militares, introduzidos pelos que exerciam a autoridade; designação de peças de vestuário e de obejectos de uso comum; termos de ciência, ou das artes e ofícios em que os árabes eram peritos, abundam nas línguas da Península. Com os novos objectos e as novas profissões vieram, naturalmente, os seus nomes. E estes termos são particularmente frequentes naquelas profissões e indústrias a que os árabes mais se dedicavam. Assim, os árabes eram peritos construtores; e nos ofícios de pedreiros e carpinteiros há muitos termos na sua língua, a começar pelo de alvenel ou alveneu, com que na nossa província se designava o pedreiro. Os árabes eram cuidadosos horticultores, e na linguagem dos hortelões há muitas palavras que deles nos ficaram, como é, para dar apenas um exemplo, o nome da conhecida e típica nora da horta alentejana.
Mais que nenhuma outra, talvez a profissão de pastor foi seguida e respeitada entre os árabes. Como os outros povos semitas, os árabes eram tradicionalmente pastores. Pastores de tempos imemoriais na sua remota terra natal. Pastores no norte de àfrica, donde, misturados com os berberes, passaram às nossas terras, Nada mais natural pois, do que encontrarmos um grande número de termos de origem árabe na linguagem profissional do pastor alentejano.
Esta abundância ressalta das seguintes notas acerca das palavras empregadas pelos pastores, notas tomadas principalmente no termo de Serpa, e, receio bem, muito incompletas. Pode haver, porém, um certo interesse em as publicar, porque de um lado, parte destas palavras, ou faltam ou vêm mal definidas nos Dicionários; e, de outro, tendo resistido intactas muitos séculos, se vão obliterando neste nosso tempo, em que tudo se transforma e gasta.
Comecemos pela designação dos próprios pastores.
- Rabadão - é o pastor chefe, a cargo de quem está a fiscalização e inspecção de todos os rebanhos de gado lanígero do mesmo dono. Um grande lavrador, podendo possuir alguns milhares de cabeças, divididas em numerosos rebanhos, tem ao seu serviço um único rabadão.
A palavra RABADAN é de origem árabe, e derivada, segundo o admite Dozy de rabbad-dhan ( o dono ou chefe das ovelhas ou carneiros). Bluteau, que a não inclui no seu Vocabulário, cita-a no entanto, como sendo espanhola: «a que os espanhóis chamam rabadan.» É porém, perfeitamente portuguesa, corrente em todo o Alentejo, pelo menos no distrito de Beja.
É de notar que a palavra vem mal definida nos nossos Dicionários modernos (1899), por exemplo, no de Moraes. <no meu dicionário de Cândido Figueiredo-1913- Rabadão- aquele que guarda gado miúdo. Maioral de pastores.>. Pelo contrário, o velho dicionário espanhol de Covarrubias dá-lhe exactamente o sentido que ainda hoje tem no Alentejo.
Maioral- é o primeiro pastor de cada rebanho - tantos maiorais quantos rebanhos. A palavra nada tem de árabe como é fácil de ver; e a sua origem é perfeitamente clara.
Ajuda- é o segundo pastor do rebanho. També a sua origem e claríssima e ùnicamente notarei, que se torna francamente como designação própria, e se diz, por exemplo: - O Ajuda de tal ou tal rebanho.
Zagal- significa hoje pròpriamente no Alentejo um rapazito de treze ou catorze anos, que às vezes nem ganha soldada, serve só para comer e auxilia na guarda do gado o maioral e o ajuda. (Serve só para comer ?
auxiliar na guarda do gado,não é nada?). É palavra árabe, e, na mesma forma zagal, significava naquela
língua um rapaz forte e animoso. Por uma simples e natural derivação de sentido veio a designar os pastores moços, habitualmente robustos e desembaraçados. Nesta acepção, no masculino e no feminino, zagal e zagala, a empregaram os escritores espanhóis, Cervantes e outros e, também os nossos portugueses de mais autoridade, como Rodrigues Lobo e Sá de Miranda. É , pois, uma palavra classica da nossa língua. No entanto, inclino-me a crer, que em tempos foi mais espanhola que portuguesa. Gil Vicente, quando escreve em espanhol, serve-se, com frequência, das expressões Zgal e Zagala. No «Auto pastoril castelhano» chama mesmo zagala à Esposa dos cantares, que identifica com Nossa Senhora:
Pues sabes quien es aquella ?
Es la zagala hermosa,
Que Salomon dice esposa
Quando canticava della.
Quando, porém, escreve na sua língua, no «Auto Pastoril português Auto de Mofina Mendes» e em outros, escreve sempre - que me lembre - pastor e pastora, de onde parece não admitir a primeira como genuinamente portuguesa.
Voltando aos nossos pastores de Serpa, temos que entre eles ZAGAL não é sinónimo de pastor ou de pastor moço, mas é o nome próprio e especial do rapazito que anda no rebanho.
Passemos aos nomes, que os pastores dão ao gado, nas diversas idades e circunstâncias.
Borrego e Borrega- lhe começam a chamar desde o nascimento. A palavra cordeiro não é empregada por eles, e, nem sei mesmo se a conhecem.
Borro e Borra- lhe passam a chamar ao ano, mais pròpriamente, lhe começam a chamar aí pelos fins das feiras do verão, quando têm quase um ano. Esta e a precedente palavra procedem da mesma origem, evidentemente latina. Se se derivaram de da lã ainda curta e formando uma espécie de borra, como dizem alguns dicionários; se de burrus, de côr ruiva ou castanha escura, como dizem outros, é o que não procuraremos averiguar. De rest, não me ocuparei em examinar as etimologias das palavras correntes e que se encontram nos dicionár Continua
CONDE DE FICALHO in Tradição de Serpa - 1899
A linguagem dos povos da Península ficou, pois, intacta ou quase intacta na sua estrutura íntima, e apenas superficialmente enriqueceu de novas palavras. E mesmo na adopção destas novas palavras deu-se uma circunstância notável. São raras, como já indicaram Engelmann e Diez, as palavras abstractas, espanholas ou portuguesas, de origem árabe. Os termos que designam paixões, sentimentos, modos de ser internos do espírito ou da alma, são, com raríssimas excepções, de origem latina, quer dizer, que já se usavam antes da conquista. Parece que dominados e dominadores ficaram durante séculos moralmente separados e afastados. Conservando uma religião distinta, afeições e aspirações diversas, os povos dominados pensavam no seu velho e rude idioma, e apenas aprenderam as palavras necessárias para se entenderem com os seus novos senhores e amos.
Pelo contrário, são frequentes as palavras concretas de origem árabe. Nomes de impostos, de cargos civis e militares, introduzidos pelos que exerciam a autoridade; designação de peças de vestuário e de obejectos de uso comum; termos de ciência, ou das artes e ofícios em que os árabes eram peritos, abundam nas línguas da Península. Com os novos objectos e as novas profissões vieram, naturalmente, os seus nomes. E estes termos são particularmente frequentes naquelas profissões e indústrias a que os árabes mais se dedicavam. Assim, os árabes eram peritos construtores; e nos ofícios de pedreiros e carpinteiros há muitos termos na sua língua, a começar pelo de alvenel ou alveneu, com que na nossa província se designava o pedreiro. Os árabes eram cuidadosos horticultores, e na linguagem dos hortelões há muitas palavras que deles nos ficaram, como é, para dar apenas um exemplo, o nome da conhecida e típica nora da horta alentejana.
Mais que nenhuma outra, talvez a profissão de pastor foi seguida e respeitada entre os árabes. Como os outros povos semitas, os árabes eram tradicionalmente pastores. Pastores de tempos imemoriais na sua remota terra natal. Pastores no norte de àfrica, donde, misturados com os berberes, passaram às nossas terras, Nada mais natural pois, do que encontrarmos um grande número de termos de origem árabe na linguagem profissional do pastor alentejano.
Esta abundância ressalta das seguintes notas acerca das palavras empregadas pelos pastores, notas tomadas principalmente no termo de Serpa, e, receio bem, muito incompletas. Pode haver, porém, um certo interesse em as publicar, porque de um lado, parte destas palavras, ou faltam ou vêm mal definidas nos Dicionários; e, de outro, tendo resistido intactas muitos séculos, se vão obliterando neste nosso tempo, em que tudo se transforma e gasta.
Comecemos pela designação dos próprios pastores.
- Rabadão - é o pastor chefe, a cargo de quem está a fiscalização e inspecção de todos os rebanhos de gado lanígero do mesmo dono. Um grande lavrador, podendo possuir alguns milhares de cabeças, divididas em numerosos rebanhos, tem ao seu serviço um único rabadão.
A palavra RABADAN é de origem árabe, e derivada, segundo o admite Dozy de rabbad-dhan ( o dono ou chefe das ovelhas ou carneiros). Bluteau, que a não inclui no seu Vocabulário, cita-a no entanto, como sendo espanhola: «a que os espanhóis chamam rabadan.» É porém, perfeitamente portuguesa, corrente em todo o Alentejo, pelo menos no distrito de Beja.
É de notar que a palavra vem mal definida nos nossos Dicionários modernos (1899), por exemplo, no de Moraes. <no meu dicionário de Cândido Figueiredo-1913- Rabadão- aquele que guarda gado miúdo. Maioral de pastores.>. Pelo contrário, o velho dicionário espanhol de Covarrubias dá-lhe exactamente o sentido que ainda hoje tem no Alentejo.
Maioral- é o primeiro pastor de cada rebanho - tantos maiorais quantos rebanhos. A palavra nada tem de árabe como é fácil de ver; e a sua origem é perfeitamente clara.
Ajuda- é o segundo pastor do rebanho. També a sua origem e claríssima e ùnicamente notarei, que se torna francamente como designação própria, e se diz, por exemplo: - O Ajuda de tal ou tal rebanho.
Zagal- significa hoje pròpriamente no Alentejo um rapazito de treze ou catorze anos, que às vezes nem ganha soldada, serve só para comer e auxilia na guarda do gado o maioral e o ajuda. (Serve só para comer ?
auxiliar na guarda do gado,não é nada?). É palavra árabe, e, na mesma forma zagal, significava naquela
língua um rapaz forte e animoso. Por uma simples e natural derivação de sentido veio a designar os pastores moços, habitualmente robustos e desembaraçados. Nesta acepção, no masculino e no feminino, zagal e zagala, a empregaram os escritores espanhóis, Cervantes e outros e, também os nossos portugueses de mais autoridade, como Rodrigues Lobo e Sá de Miranda. É , pois, uma palavra classica da nossa língua. No entanto, inclino-me a crer, que em tempos foi mais espanhola que portuguesa. Gil Vicente, quando escreve em espanhol, serve-se, com frequência, das expressões Zgal e Zagala. No «Auto pastoril castelhano» chama mesmo zagala à Esposa dos cantares, que identifica com Nossa Senhora:
Pues sabes quien es aquella ?
Es la zagala hermosa,
Que Salomon dice esposa
Quando canticava della.
Quando, porém, escreve na sua língua, no «Auto Pastoril português Auto de Mofina Mendes» e em outros, escreve sempre - que me lembre - pastor e pastora, de onde parece não admitir a primeira como genuinamente portuguesa.
Voltando aos nossos pastores de Serpa, temos que entre eles ZAGAL não é sinónimo de pastor ou de pastor moço, mas é o nome próprio e especial do rapazito que anda no rebanho.
Passemos aos nomes, que os pastores dão ao gado, nas diversas idades e circunstâncias.
Borrego e Borrega- lhe começam a chamar desde o nascimento. A palavra cordeiro não é empregada por eles, e, nem sei mesmo se a conhecem.
Borro e Borra- lhe passam a chamar ao ano, mais pròpriamente, lhe começam a chamar aí pelos fins das feiras do verão, quando têm quase um ano. Esta e a precedente palavra procedem da mesma origem, evidentemente latina. Se se derivaram de da lã ainda curta e formando uma espécie de borra, como dizem alguns dicionários; se de burrus, de côr ruiva ou castanha escura, como dizem outros, é o que não procuraremos averiguar. De rest, não me ocuparei em examinar as etimologias das palavras correntes e que se encontram nos dicionár Continua
CONDE DE FICALHO in Tradição de Serpa - 1899